A melhor coisa do mundo*
Qual é a melhor coisa do mundo? Há tantas, respondo, derrotada. Não, mas aquela! insistem. Tu sabes, aquela que é a melhor de todas, sem a qual não conseguirias viver, ou a que reconheces como a melhor, quer a tenhas ou não. Aquela, sim. Ainda cabisbaixa, penso: não há; ou melhor, há muitas, separadamente, em diferentes fases da vida ou mesmo consoante as estações do ano. A melhor coisa do mundo no Verão pode não ser a melhor coisa do mundo no Inverno, como, por exemplo, ler na esplanada, comer gelados e passear no jardim ao fim do dia. No Inverno, são boas as mantas na sala, o chocolate quente, os pijamas: cada coisa, por melhor que seja, no seu lugar e, sobretudo, no seu tempo. Mas depois olho para aqueles sapatos pretos com pintinhas cor-de-rosa que comprei em Buenos Aires e concluo que se podem usar na Primavera, no Verão, no Outono ou no Inverno, característica que os torna ainda mais baratos e melhores entre os melhores sapatos pretos com pintinhas cor-de-rosa.
Mas não nos desviemos do tema: qual é a melhor coisa do mundo? Quando Ella Fitzgerald canta You're the Top, de Cole Porter, a comparação (porque para ser "melhor" tem de se o ser comparativamente a qualquer coisa, triste e inevitavelmente, pior) é ilustrada com vários exemplos de coisas melhores do mundo. A outra pessoa (amada, supomos) não é "como", mas simplesmente é "o Coliseu, o Louvre, uma melodia de uma sinfonia de Strauss, um soneto de Shakespeare, o Rato Mickey, o rio Nilo, a Torre de Pisa, o sorriso da Mona Lisa", por oposição ao que o desgraçado que admira é: "um cheque inútil, um desastre total, um falhanço". Ao contrário do pior (o "eu"), que é "um balão de brincar prestes a rebentar", o outro, a melhor coisa do mundo, é: "Mahatma Gandhi, a luz violeta de uma noite de Verão em Espanha, a National Gallery". Não teria dúvidas em traduzir You're the Top por "Tu és a melhor coisa do mundo". É disso que se trata. Podemos continuar o tema de Cole Porter e acrescentar: "és uma canção de Cole Porter, Frank Sinatra, o templo de Zeus, és um verso de Safo, o iPod nano, és Madonna", ao contrário de mim que sou "um telemóvel sem bateria, um dvd sem legendas, um bolo queimado". A melhor coisa do mundo precisa de contraditório para se afirmar como a melhor. Embora, na verdade, nem precise.
Numa tentativa desesperada de fugir com o rabo à seringa, podemos avançar com uma definição geral, do tipo: a melhor coisa do mundo é o amor. Bocejo. Sim, mas o amor de mãe, de pai, de marido, de mulher, todos esses e o amor ao automóvel que tens guardado na garagem e sobre o qual terás agora de pagar um imposto acrescido? Muito vago. Posso também dizer que a melhor coisa do mundo é a memória. Julgo que é uma fortíssima candidata ao título. Mas o excesso de memória (ou nunca esquecer) pode ser terrível, e a melhor coisa do mundo nunca se tem em doses suficientes. É por isso que, por exemplo, filetes de polvo com arroz do mesmo não é um bom candidato. Nem sumo de clementina sequer. A melhor coisa do mundo não é de comer, nem de beber, porque enjoa e porque há pessoas que nem isso têm e que não podem ser excluídas neste concurso democrático. Arrisco: a melhor coisa do mundo é o entusiasmo. Remeto os que consideram a minha escolha frívola para a origem da palavra: entusiasmo significa literalmente "ter deus em nós". Pode ser uma ideia um pouco megalómana, mas, afinal de contas, estamos a falar da melhor coisa do mundo.
* Texto publicado a 5-11-05, na
Única.