O anonimato*
Receber uma carta anónima e ameaçadora, sem que nos seja oferecida possibilidade de resposta, não tem piada nenhuma. Sei disso por experiência alheia e própria. Mas se pensarmos bem - e com distância, tudo se consegue - tem o seu interesse. Vejamos: há alguém no mundo que segue atentamente todos os nossos passos (banda sonora: «Every breath you take», Police), que odeia a sua própria existência (banda sonora: «Don't let me get me», Pink) - e, consequentemente, a de toda a gente -, que tem o ânimo suficiente para debitar todas as suas angústias num papel e deitar no marco do correio o envelope sem remetente.
Hoje em dia, com «chats», fóruns virtuais, blogues e caixas de comentários, os anónimos reproduzem-se como coelhos. São mais que as mães! Basta ter um computador com ligação à Internet. Com a proliferação de anónimos surge, naturalmente, a multiplicação dos insultos. Mas qual é o valor de um insulto anónimo? Nenhum. O insulto boçal não tem valor, e menos ainda quando não é assinado. O insulto disfarçado de «crítica», uma vez que demonstra um maior empenhamento por parte do seu autor, pode ser perdoado (ou lido) numa única circunstância: tem de ter graça. O grande problema talvez seja mesmo esse: a falta de piada no insulto-crítica, usualmente dito com um tom rasteiro. De intenções obscuras está o mundo cheio e não sabemos o que move um completo estranho, sozinho em casa ou mal acompanhado.
O anónimo que insulta é como uma pessoa que pede ajuda no meio da rua. Sem perceber que está a pedir ajuda. Sem que a vejamos. Bom, não estará bem no meio da rua. O insultado está no meio da rua - assim é que é - e o insultador num beco sem saída. Literal e metaforicamente. Mas quando reincide é apanhado. Imaginemos o anónimo «chiquinho», que na vida real tem mais de 40 anos e é uma mulher. Ou é um homem que gosta de usar o seu vestidinho de vez em quando. O incómodo que sente no anonimato leva-o a participar activamente em discussões públicas sobre pessoas que não conhece. O chiquinho, que se desdobra em insultos ao próximo, reincidindo em fóruns ou caixas de comentários próprias ou alheias, está a querer dizer: «Eu não sou anónimo nenhum! Sou filho da minha mãe, neto do meu avô e vizinho do meu vizinho. Tenho toda a autoridade do mundo para te insultar!» Ou seja, pretende ser descoberto e, sobretudo, reconhecido naquela identidade de que tanto se orgulha. Sim, porque cuidado com o chiquinho, que é filho da sua mãe etc. Ui.
Responder a um anónimo que insulta é uma perda de tempo, bem com um sinal de perda de discernimento. Não se pode exigir de quem insulta que, ainda por cima, compreenda o ponto de vista de quem responde e se defende (atacando ou não). Não é possível ter os dois mundos numa só pessoa. Não se pode exigir boa educação a uma pessoa mal-educada, decência a uma pessoa indigna; delicadeza a uma pessoa invejosa. Tentar convencer alguém que insulta de que está errado é tarefa para gente optimista e, eventualmente, desocupada. Quando isso acontece, tudo se confunde e as coisas deixam de estar nos seus devidos lugares.
* Texto publicado a 10-06-05, na
Única.