Discussão sobre o gostoHá uma discussão interessante a decorrer no
Last Tapes, no
Seta Despedida e no
Indústrias Culturais acerca do gosto. Porque não me parece que se esteja a discutir Tarkovsky nem Eastwood, mas a estranheza de se gostar de ambos. Procuram-se argumentos que justifiquem escolhas tão díspares, numa tentativa quase de desculpabilizar um gosto aparentemente menos digno. Uma espécie de "se tu gostas de Lewis Caroll como podes gostar de Madonna?" E penso nos livros para crianças que a cantora escreveu.
A
Alexandra escreve o seguinte: "Gostar de Tarkovsky nunca me impediu de apreciar comédias acéfalas e unidimensionais com a Meg Ryan. As coisas não são assim tão simples." A adjectivação atribuída às comédias com a Meg Ryan indicam uma hierarquia no gosto. Ou seja, "eu gosto, mas sei que aquilo não vale nada". Não será ainda uma espécie de timidez em aceitar que se gosta de alguma coisa menos boa?
A questão do gosto não tem fim nem solução à vista. Podemos passar o resto da vida a tentar compreender, a explicar e pacientemente a justificar os nossos gostos que me parece um excelente projecto de vida. Mas parece-me fundamental perceber que não são os nossos gostos que nos definem. As coisas não são, de facto, assim tão simples.
David Hume, em
Of Standard of Taste, começa por admitir a impossibilidade de haver um padrão de gosto: "It is natural for us to seek a standard of taste; a rule by which the various sentiments of men may be reconciled; at least, a decision, afforded, confirming one sentiment and condemning the other. There is a species of philosophy, which cuts off all hopes of success in such an attempt, and represents the impossibility of ever attaining any standard of taste." Segundo Hume, o gosto nivela nos casos gerais, mas rapidamente divide nos casos particulares: "(...) But when critics come to particulars, this seeming unanimity vanishes; and it is found that they had affixed a very different meaning to their expressions." É na passagem dos casos gerais, em que existe uma aparente unanimidade, para os casos particulares, ou para a explicação do que queremos dizer com determinadas palavras, que a separação começa.
Todos podemos apreciar a elegância, mas quando queremos dar exemplos da mesma ou explicá-la, o conceito dificilmente terá o mesmo significado para todos: as controvérsias de gosto não se resolvem com clarificações linguísticas. Mas quando o problema parece resolver-se com o provérbio "gostos não se discutem", Hume introduz a ideia de um senso comum; comum a uns e não a outros: "(...) there is certainly a species of common sense which opposes it, at least serves to modify and restrain it." Todos temos o nosso gosto, mas só o gosto de alguns interessa e é verdadeiro. A natural igualdade dos gostos é absurda para Hume por causa da impossibilidade de igualarmos objectos diferentes. Sempre que o fazemos, o nosso gosto não merece crédito; quase como se não estivéssemos preparados para gostar.
O veredicto dos que têm uma delicadeza do gosto é aquele que realmente interessa e que pode chegar a estabelecer uma espécie de padrão: "A good palate is not tried by strong flavours; but by a mixture of small ingredients, where we are still sensible of each part, notwithstanding its minuteness and its confusion with the rest." Segundo Hume, só podemos distinguir os vários ingredientes através da experiência e da comparação: "So advantageous is practice to the discernment of beauty, that, before we can give judgment of any work of importance, it will even be requisite, that that very individual performance be more than once perused by us and be surveyed in different lights with attention and deliberation." O mundo humeano é constituído por pessoas capazes de sentir prazer ou desprazer, embora só algumas tenham autoridade para emitir juízos de gosto: "Thus, though the principles of taste be universal, and, nearly, if not entirely the same in all men; yet few are qualified to give judgment on any work of art, or establish their own sentiment as a standard of beauty."
Hume chega a descrever o verdadeiro padrão de gosto: "Strong sense, united to delicate sentiment, improved by practice, perfected by comparison, and cleared of all prejudice, can alone entitle critics to this valuable character; and the joint verdict of such, wherever they are to be found, is the true standard of taste and beauty." Mas não existe um padrão de gosto porque não há acordo, embora Hume fale numa autoridade do gosto constituída por críticos desprovidos de preconceitos, isentos, refinados, experientes e conhecedores: "Though men of delicate taste be rare, they are easily to be distinguished in society by the soundness of their understanding and the superiority of their faculties above the rest of mankind." Mas se o gosto é uma questão de escolha, como afirma depois Hume - "We choose our favourite author as we do our friend, from a conformity of humour and disposition" - então pode ser nivelador, no sentido em que o gosto é uma característica da espécie humana e nos aproxima, nos identifica.
Immanuel Kant afasta-se de Hume na definição de juízo de gosto: "(...) não é o prazer, mas a validade universal deste prazer que é percebida como ligada no ânimo ao simples julgamento de um objecto, e que é representada
a priori num juízo de gosto como regra universal para a faculdade do juízo e válida para qualquer um. É um juízo empírico o facto que eu perceba e ajuíze um objecto com prazer. É porém um juízo
a priori que eu o considere belo, isto é que eu deva postular aquele comprazimento em qualquer um como necessário." Kant afasta-se dos juízos de gosto
a posteriori e dependentes da experiência de Hume, para os universalizar e designá-los como juízos sintéticos ou que acrescentam uma informação de prazer ou desprazer,
a priori, ou seja, independentes de qualquer experiência. O gosto deixa assim de depender do conhecimento e o tribunal de gosto de Hume deixa de fazer sentido: todos podemos dizer que algo é belo porque os objectos não são independentes de nós. O juízo de gosto é uma maneira de lidarmos com as coisas, de as acolhermos. Ou seja, para Kant, nada acontece sem que o fim sejamos nós próprios: "(...) o juízo de gosto funda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a faculdade do juízo), a partir do qual porém nada pode ser conhecido e provado acerca do objecto, porque esse conceito é em si indeterminável e inapropriado para o conhecimento."
Kant conclui que todo o juízo de gosto depende de supormos que tudo aponta para nós. Ou seja, o que acolhemos é o que somos, não havendo distinção entre sujeito e objecto: "(...) não se trata de saber o que a natureza é, ou tão pouco o que ela é como um fim para nós,
mas como a acolhemos."
Eu gosto da explicação de Kant.
Bibliografia:
1 e
2.